domingo, 25 de julho de 2010

Desafios para o tratamento da epilepsia no Brasil.

O Brasil tem vários problemas que o colocam em posição desfavorável para enfrentar os desafios impostos pela epilepsia. Além da alta prevalência da doença, sobretudo nas classes sociais mais carentes da população, o sistema de saúde pública é desorganizado e ineficiente, o acesso dos pacientes ao atendimento especializado é difícil e demorado, os profissionais de saúde são mal remunerados, as instalações da maioria dos serviços de saúde pública são deficientes e mal equipadas e o nível cultural da população é extremamente baixo, dificultando o diagnóstico e a aderência ao tratamento. Além disso, há um evidente conflito de interesse público-privado, onde a ausência de um regime de dedicação exclusiva e remuneração justa na saúde pública faz com que os mesmos médicos que atendem no sistema público também trabalhem no privado, não havendo nenhum interesse de que o serviço público seja de qualidade, já que isso significaria uma migração significativa de pacientes das clínicas privadas para o sistema público.
Enquanto a maioria das cidades brasileiras não tem sequer um único neurologista, as que contam com esses profissionais enfrentam a barreira da falta de estrutura e do uso equivocado dos recursos públicos, fazendo com que os profissionais sejam mal remunerados, desestimulados e não tenham acesso a programas de reciclagem contínua. Isso torna os empregos públicos pouco atraentes aos especialistas, fazendo com que a grande maioria dos pacientes sejam tratados por clínicos gerais recém-formados nos postos de saúde e nas emergências dos hospitais. Devido às profundas deficiências do ensino médico no país, infelizmente os médicos generalistas nem sempre têm o treinamento mínimo para diagnosticar e tratar pacientes com epilepsia.
O diagnóstico da epilepsia se baseia em minuciosa conversa com o paciente, familiares e testemunhas das crises, além de exame físico completo, quase nunca possíveis nas sempre abarrotadas unidades de saúde pública. Além disso, ele se apóia fortemente em dados obtidos através de exames complementares. Dois deles são fundamentais na grande maioria dos pacientes, o eletroencefalograma (EEG) e a ressonância magnética (RM) do encéfalo. Infelizmente, a grande maioria dos pacientes do SUS não tem acesso rápido a nenhum desses exames. A RM é raramente conseguida, com a alegação de que a tomografia computadorizada (TC) é suficiente como método de neuroimagem. Sabe-se que a TC não é sensível para o diagnóstico de muitas causas de epilepsia. Nos poucos pacientes que conseguem acesso à RM, encontra-se a barreira dos equipamentos obsoletos e a utilização de protocolos inadequados para o estudo da epilepsia. Quando o EEG é realizado, geralmente os resultados são duvidosos, pois muitas vezes os exames são realizados por profissionais não especialistas sem familiaridade com a interpretação dos complexos exames eletroencefalográficos. Conseqüentemente, é comum a interpretação equivocada dos traçados, levando ao diagnóstico incorreto da epilepsia em pacientes não-epilépticos, com grande repercussão psicológica e social para os pacientes e elevado peso econômico para o país. Além disso, a grande maioria das emergências e unidades de terapia intensiva públicas e privadas do Brasil não têm EEG disponível, fazendo com que as manifestações atípicas da epilepsia permaneçam amplamente subdiagnosticadas e não tratadas, aumentando significativamente os custos ao sistema de saúde.
Após enfrentar todas essas dificuldades, não é de se espantar que nas estatísticas mais otimistas, aproximadamente 50% dos pacientes com epilepsia são tratados incorretamente e 20% sequer são diagnosticados e tratados. Sem falar dos incontáveis pacientes que são incorretamente tratados como epilépticos, sem ter a doença. A falta de recursos faz com que os medicamentos disponíveis gratuitamente na saúde pública sejam os mais baratos e associados com efeitos colaterais mais intensos, muitas vezes intoleráveis e prejudiciais ao paciente, com conseqüências imensuráveis, sem falar nas elevadas taxas de descontinuação e insucesso terapêutico. Apesar da comprovação científica a favor da monoterapia (uso de apenas um medicamento) para o tratamento da maioria dos pacientes com epilepsia, é comum que pacientes epilépticos com controle inadequado das crises recebam uma combinação de várias drogas anticonvulsivantes em subdoses, complicando ainda mais o controle das crises, os efeitos colaterais e, conseqüentemente, a aderência ao tratamento, além de aumentar desnecessariamente os custos. A popularidade da politerapia “irracional” no Brasil tem várias possíveis explicações, tais como ausência de especialistas com treinamento adequado em epilepsia, pouco ou nenhum conhecimento em epilepsia dos médicos generalistas, exíguo tempo da consulta médica, precária relação médico-paciente, baixo nível cultural dos pacientes, indisponibilidade de exames diagnósticos apropriados e falta de acesso às drogas com menos efeitos colaterais.
Outro tema que deve ser destacado é o das epilepsias refratárias ao tratamento medicamentoso. Aproximadamente 40% dos pacientes não alcançarão controle das crises, mesmo usando doses adequadas de um anticonvulsivante corretamente indicado. Pelo menos metade desses pacientes são potenciais candidatos ao tratamento cirúrgico da epilepsia, com chance de cura em até 60% deles. Entretanto, o sucesso da cirurgia depende da identificação precoce dos pacientes refratários e da disponibilidade de centros especializados em epilepsia para a localização do foco epiléptico e sua ressecção. As limitações do sistema de saúde já citadas tornam muito difícil o reconhecimento precoce dos pacientes refratários e faltam centros especializados em tratamento cirúrgico da epilepsia em todas as regiões do país. Isso faz com que milhares de pacientes candidatos à cirurgia sequer tenham a chance de ser beneficiados e tenham sua qualidade de vida extremamente comprometida, sem contar os gastos públicos com auxílios-doença e aposentadorias que poderiam ser muitas vezes evitados. Outros tratamentos reconhecidamente efetivos para epilepsia refratária em casos selecionados como dieta cetogênica e estimulação do nervo vago são praticamente inacessíveis para a grande maioria da população brasileira.
Temos muito que avançar na abordagem da epilepsia no Brasil. Pela alta frequência da doença na população e suas terríveis conseqüências médicas, socioeconômicas e psicológicas para os pacientes e para o país, é urgente que se organize um sistema eficiente de atendimento para minimizar esse enorme problema de saúde pública. É lamentável que algumas doenças como a infecção pelo HIV ou os programas de transplante de órgãos recebam tantos recursos públicos e funcionem como vitrine até internacional para o SUS, enquanto as epilepsias e tantas outras doenças neurológicas fiquem completamente esquecidas pelo sistema público de saúde brasileiro.

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